Texto de João Ricardo Lopes publicado na sua página:
No extremo noroeste de Fafe, numa das encostas do Maroiço, a pouco mais de um quarto de hora do centro da cidade, situa-se Aboim, umas das típicas aldeias do Concelho: pequena, colorida de tojo e rebanhos, atravessada de silêncio e por rotas de pedestrianismo, de vez em quando, também, por aficionados de moto 4, num despropósito de poeira e ruído…
Dispenso-me de grandes apresentações. Já noutras alturas me demorei sobre os encantos deste lugar imperdível. Não vem no mapa, não se fala das suas gentes, não se lhe conhecem artefactos históricos. Aboim é, apesar disso, um dos santuários de paz de onde dificilmente saio a pensar nos problemas do costume. Aqui apetece somente o fervilhar do verde, apetece a respiração pura, a fotografia.
Avista-se com facilidade o Rio Cávado, serpenteando lá ao fundo, em terras de Vieira do Minho. E avista-se também os picos de Lanhoso: entre eles, o do seu castelo afamado. Mais longe, o Sameiro, em Braga. E entre cada elemento um recamado de maciços graníticos negrejando, como num cenário de Caspar David Friedrich. Delicioso!
Não há luxos na paisagem. Tudo o que é belo, é-o simplesmente. Até este moinho erguendo-se numa colina sobranceira ao povoado. Diz-se recuperado da ruína. Não tem o pano que faria as pás semelhar mais autênticas (por causa dos roubos), mas é digno de ser visto e possui o seu inegável ar bucólico. Muitos, que assim pensam, vêm aqui em romagem para o retrato da praxe.

Em baixo, no único café que pude encontrar, entre bandeirinhas do Benfica e garrafas de digestivos, aparece-me um simpático senhor de bigode farto a querer vender-me um cabrito. Do melhor que há por aquelas bandas explicou. Um olhar em volta capta toda a melancolia do espaço. Mesas e mais mesas vazias. Todas. Não me lembro da última vez que encontrei num espaço tão só. Um cabrito não vinha a calhar, mas gente sim. Gente, gente-gente, gente com quem conversar (curiosa essa súbita falta do frenesim habitual dos cafés).
Ao longo das estradas, elas também despidas de almas e automóveis, eis que me deparo com um desses ajuntamentos de gado à moda antiga, aparentemente sem dono, rebanhos mistos, com cabras e ovelhas correndo os mesmos caminhos estreitos, com os cães de guarda fitando-nos numa bonomia desconfiada. A pastora, ei-la ao longe, de atalaia, numa penedia. Grito-lhe. Aceno-lhe. Fotografo-a assim mesmo, aqui mesmo, do meu pequeno ponto no horizonte. Fotografo o seu rebanho, fotografo o silêncio, fotografo a solidão. Há em todas as coisas um gesto rude e simultaneamente cortês, as cabrinhas parecem posar, não admiraria que o fizessem. Os animais de pastoreio são avantajados e saudáveis, crescem ao deus-dará, não prestam contas a nenhuma mão fiscalizadora do Estado.

Desço agora a Moreira de Rei. A estrada é ainda de alcatrão, cruza-se com nomes como Gontim, Lagoa, Várzea Cova, Pedraído. Uma brisa fresquíssima de carvalhal, de tojo, de ervas, corta-nos de tão fria. As cores do horizonte multiplicam-se, suavizam-se, perdem-se numa miscelânea de azul e tons de fogo. Foi neste recanto onde me encontro, em plena Serra, que escrevi há anos grande parte dos poemas de contra o esquecimento das mãos. No carro, com os cigarros e o caderno, somente o Sete Rosas Mais Tarde de Paul Celan, magnificamente traduzido por Yvette Centeno e João Barrento. Foi aqui que me curei da vida, que me limpei dos desastres, que me quis de novo como sou ‒ lugar-talismã, sagrado, podia dizê-lo…
Dá-me ganas de avançar. O carro conduz-me agora por um percurso de terra batida. Os aficionados do Rally de Portugal conhecem-no melhor do que eu. As torres eólicas (este é um dos maiores parques do país) produzem um silvo característico. Há dias que as suas pás enormes, ceifando o verde, girando sem parar, me aborrecem. Outros há que lembram um filme rodado em movimento, homenageando a era do progresso, acrescentando à paisagem um cosmopolitismo contrastante com a timidez e acanhamento das aldeias à volta.
Quem por cá anda, em busca de tartaranhões e grifos como eu, ou apenas pelo prazer de escutar os zumbidos espontâneos do vento, depara-se não raro com uma manada de garranos. Ocupando as colinas, descendo aos vales, esgueirando-se por entre bosques e silvados, são uma visão maravilhosa. Os potros aos pinotes, os machos e fêmeas adultos espiando cada movimento do tripé, eu a evocar antigos habitantes destas paragens, nómadas, celtas, mouros tresmalhados, poetas como eu.
De rocha em rocha, de laje em laje, trepo até ao alto de uma brenha. Avisto ao redor todo um firmamento de indizível liberdade. Para mim a liberdade é isto! O meu silêncio é aqui. Quando às vezes me canso de ensinar e das palavras que repito até deixar de as conhecer, preciso de vir.

Por estas bandas há também as lendas, as deliciosas fantasias que nem o desgaste dos tempos apagou. Há as tradições, as boas tradições que a distância de muitos filhos e netos, lá pelas Franças e Suíças, tornaram mais sagradas. Assim é a narrativa muito certa da Senhora das Neves, a que «bota fora» todo o Diabo que hajamos no corpo e na alma, recontada ainda há pouco pela Dona Miquelina. Assim é a história desta estranha casa, engastada na paisagem, encastoada entre dois blocos cilíndricos, e a que chamam «Casa dos Flintstones», «Casa do Penedo», «Casa do Rico», etc. A lenda diz que aqui veio um leproso curar-se da morte, aqui no meio do nada, aqui onde nem a maior peste pôde terminar o seu trabalho. O homem salvou-se e jurou não deixar desaparecer o seu refúgio. Ele aí está (o som do obturador reprodu-lo vezes sem conta), repleto de encanto, repleto de fascínio, repleto de turistas ocasionais que o calcorreiam, lhe mijam, o enxovalham. Triste!

Com a proximidade da noite regresso à estrada principal, ziguezagueando até Sant’ana ou a Marinhão. Nunca me sinto tão preenchido como nestes poucos minutos de penumbra que separam as duas metades do dia. Mora nestes lugares semiermos, neste interstício, um mistério que me não deixa partir completamente. Com alguma sorte, ao voltarmos ao ponto de partida, encontramos um conhecido, engavelamos conversa, somos convidados a entrar nalguma casita tosca, nalgum tugúrio, para provarmos do vinho (tintíssimo) e comermos broa com salpicão. Aqui, os forasteiros de boa vontade nunca o são verdadeiramente.
A noite anula todos os contrastes, apaga a orografia e os pensamentos. O ar é frio. Em volta há unicamente a conjuração das pedras com o céu, um rio de estrelas a transbordar (que a iluminação elétrica, feliz ou infelizmente, não chegou ainda a toda a parte), silêncio, um mais fundo silêncio de chocalhos calados, portas fechadas, gente guardada nas suas vidas. Quando me canso de ensinar e de repetir as palavras preciso de vir. Venho muitas vezes. Aqui o tempo é outro, nem depressa nem devagar, apenas cheio de sentido. Não me perguntem porquê.
